Imagem retirada de: www.joaninhaoulibelinha.blogspot.pt
valter hugo mãe, A máquina de fazer espanhóis. Carnaxide, Objectiva, 2010, 287 p.
Requisitado na Biblioteca João Soares
Numa altura em que VHM promove o seu mais recente livro "A desumanização", fiz a minha primeira leitura deste autor. É um livro que aborda um tema complexo pois fala-nos do sentimento de perda, que vem com o envelhecimento e a morte. Aborda ainda a amizade e o amor numa altura em que a ausência física é mais acentuada. Aos 84 anos, o sr. Silva perde a esposa, Laura, e a família decide colocá-lo num lar. A história desenrola-se a partir do encontro que o sr. Silva irá fazer com os outros utentes do lar, os que já lá viviam e outros que chegam. Destaca-se um grupo de amigos e conhecidos com histórias de vida impressionantes, entre os quais o sr. Pereira, o sr. Esteves (sem metafísica, inspiração de um poema de Fernado Pessoa) e Anísio Franco. Ora se o Esteves "conheceu" o poeta, eu conheci o verdadeiro A.F., conservador do MNAA! Que surpresa curiosa neste livro!
Gostei de ler este livro e de descobrir o significado do título! Destaco a entrevista que este autor deu para o Jornal de Leiria, quando por cá passou em Dezembro!
"A utilidade está na comunidade..."
"nestes modos, sem pensar demasiado, para que o futuro lhe parecesse possível, joão esteves entrou mais uma vez na tabacaria alves e comprou o jornal a ordens do tio. entrou na tabacaria de sorriso educado, cumprimentou o senhor fernando pessoa que ali estava de breve conversa com o dono do estabelecimento e depois cumprimentou o próprio dono do estabelecimento e pediu o jornal de sempre, com a iluminação de sempre, que era sobretudo uma beleza jovial que adivinha dos seus traços privilegiados até dignos de um aristocrata qualquer. a genética, pensaria mais tarde joão esteves, tem destas coisas curiosas, põe-nos com beleza de nobre a passar as fomes dos miseráveis.[...] e joão esteves saiu da tabacaria sem mais nada, inconsciente de que plantara no terreno fértil da criatividade de fernando pessoa um poema eterno." p.82
"um dia essa saudade vai ser benigna. a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um trofeu de vida. um dia, senhor silva, a sua esposa vai ser uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade. a felicidade de ter partilhado consigo um amor incrível que não pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter vivido, de o ter merecido." p. 91
" sabe, acharmos que salazar é que arranjaria isto, que ele é que punha esta juventude toda na ordem, é natural, porque temos medo destes novos tempos, não são os nossos tempos, e precisamos de nos defendermos. quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores nas costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exactamente do regime e menos ainda de salazar."
"deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante durante a vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe e não vai existir. e até inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. [...]os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros." p. 225