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sábado, 8 de fevereiro de 2014

Book Review - Viagem ao Fim da Noite



Imagem retirada de: www.skoob.com.br

Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao fim da noite. Lisboa, Ulisseia, 1973, 474 p.
Requisitado na BMALV 

O ano de 2014 iniciou-se com esta leitura. Numa ida rápida à biblioteca municipal apenas para devolver uns quantos livros juvenis, a questão da técnica "Não quer levar um livro?" ficou a pairar no ar e eu não consegui dizer não... Requisitei este livro, embora não conhecesse nada sobre a história ou o seu autor, tinha apenas uma vaga ideia de já ter lido algures este título e sabia ser um clássico.

A leitura iniciou-se de forma interessante, mas a temática da I Guerra Mundial fez logo prevalecer um tom angustiante e bem revelador do absurdo do conflito. A história de Ferdinand Bardamu vai-se desenrolando por vezes de forma caótica. A passagem por África acentuou uma quebra no meu entusiasmo, mas a ida para os Estados Unidos, a aparição de Molly e o regresso a França reinstalaram mais dinamismo à história. Por vezes, em certas passagens a dor e a escuridão são muito fortes e aí percebemos bem o trauma que a vida sujeita a certas pessoas. A consciência de permanecer nesse estado e as reflexões daí resultantes fazem deste livro uma obra diferente. Não é uma leitura fácil ou agradável. Não podia ser, mas apesar disso aconselho a leitura deste livro. 

Destaco uma entrevista de António Lobo Antunes, no blogue Ciberescritas de Isabel Coutinho, na qual este escritor destaca a forma como esta obra o marcou na sua adolescência e que o fez escrever ao próprio autor. 

Tomo a liberdade de disponibilizar aqui o link para essa entrevista no blogue Ciberescritas: 
http://blogues.publico.pt/ciberescritas/2010/03/23/quando-lobo-antunes-escreveu-a-celine/

Sobre Molly:

" - Não voltes à Ford! - acabava por me desencorajar Molly. - Procura antes um emprego num escritório... Como tradutor, por exemplo, é o teu género...Os livros agradam-te...Aconselhava-me deste modo, muito carinhosamente, queria que eu fosse feliz. Era a primeira vez que um ser humano se interessava por mim, pelo meu egoísmo, de dentro se ouso dizê-lo, se punha no meu lugar, não se limitando apenas a julgar-me do seu, como todos os outros. 
Ah! se eu tivesse encontrado mais cedo esta Molly, ainda a tempo de seguir outro caminho em vez deste! Antes de desbaratar o meu entusiasmo com a galdéria da Musyne e com o monte de estrume que era Lola! Demasiado tarde, agora, para refazer a minha juventude. Não me parecia já possível! Tornamo-nos rapidamente velhos, de forma irremediável. E apercebemo-nos disso quando nos apanhamos a amar a própria desgraça, mesmo sem o desejarmos. É a natureza a mostrar-nos mais forte do que nós, aí está. Treina-nos num determinado género e depois já não podemos sair dele. Eu, por exemplo, partira na direcção da intranquilidade. Vamos pouco a pouco tomando o nosso papel e o nosso destino a sério, sem que dêmos conta disso, e depois quando caímos em nós é demasiado tarde para mudarmos. Encontramo-nos rodeados de inquietação, e claro que para sempre." p.216/217

"Passaram-se já bastantes anos depois desta partida. Anos e anos...Escrevo amiúde para Detroit, e depois ainda para todas as direcções de que me lembrava e onde fosse possível alguém conhecê-la, saber-lhe do paradeiro. Nunca recebi resposta. 
A casa encontra-se neste momento fechada, foi tudo quanto consegui apurar. Boa e admirável Molly, caso ela me possa ainda ler em qualquer lugar por mim ignorado, desejo que saiba nada haver mudado na minha afeição por ela, que a amo ainda e sempre a meu modo, que pode vir até mim quando quiser e partilhar do meu pão e do meu incerto destino. Se não for bela, paciência! Cá nos arranjaremos! Conservei tanta da sua beleza dentro de mim, tão indestrutível e tão reconfortante, que bem chega para nós os dois, pelo menos durante vinte anos, o tempo de acabarmos." p.223

Sobre o Tempo, a Vida e a Juventude:

"A água vinha marulhar junto dos percadores e ali me sentei a vê-los pescar. Eu não tinha pressa nenhuma, lá isso não, tal como eles. Chegara àquele momento, talvez àquela idade em que sabemos muito bem o que perdemos, a cada hora que passa, mas não adquirimos ainda em sabedoria, a força precisa paea estacar subitamente na estrada do tempo, e se por acaso nos tivéssemos detido não saberíamos o que mais fazer sem a paixão de avançar que admiramos e nos possui desde sempre, desde a juventude. Já não nos sentimos tão orgulhosos dela, da juventude, mas ainda não ousamos confessá-lo em público, confessar que a juventude não é talvez senão isso, entusiasmo em envelhecer.
Descobrimos em todo um passado ridículo tanto ridículo, tanta credulidade, tanta aldrabice, que desejaríamos por certo acabar de vez com a mocidade, esperar que ela se desprenda, nos ultrapasse, vê-la ir-se, afastar-se, olhá-la em toda a sua futilidade, dar-lhe a mão no seu vazio, vê-la passar de novo à nossa frente e depois partirmos nós, ficarmos certos de que na verdade ela se foi, a juventude, e tranquilamente, pelo nosso próprio caminho, passarmos vagarosamente para o lado de lá do Tempo, e observarmos então a verdade das pessoas e das coisas." p.271

Sobre o Amor e outras ilusões:

" No estado em que se encontrava [Tania], nem pensar em deixá-la. Insistia em armar ao trágico e mais ainda, em mostrar-se em pleno transe. Que momentos aqueles! Os amores contrariados pela miséria e pelas grandes distâncias são como os amores de marinheiro, não há duas opiniões, irrefutáveis e de êxito assegurado. De resto, sem ocasiões para encontros frequentes não é possível haver insultos, o que já é alguma coisa ganha. E como a vida não passa de um delírio a rebentar de mentiras, quanto mais longe estivermos e quanto mais o rechearmos de mentiras, mais contente nos achamos, é natural e vulgar. A verdade não é comestível.
Neste momento, por exemplo, é fácil que nos contem coisas a respeito de Jesus Cristo. Mas iria ele à retrete perante toda a gente, Jesus Cristo? Tenho cá na ideia que a coisa não teria resistido muito tempo se ele tivesse feito caca em público. Tudo se resume a um mínimo de presença, sobretudo quando se trata de amor." p.344/345

Este livro cumpre a meta que tracei para este ano de 2014 de ler um clássico de Literatura Estrangeira!

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